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Foto: Gonçalo Villaverde / Global Imagens |
É a mais jovem vencedora de sempre do Urso de Ouro para Melhor Curta-Metragem no Festival de Cinema de Berlim e conseguiu-o em 2016 com o filme Balada de um Batráquio. Leonor Teles tem 26 anos e estreia-se agora na realização de longas-metragens com o premiado Terra Franca, vencedor de quatro prémios nacionais e internacionais, entre eles o Prémio Escolas para Melhor Filme do Doc Lisboa 2018.
“À beira do Tejo, numa antiga comunidade piscatória, um homem vive entre a tranquilidade solitária do rio e as relações que o ligam à terra”. É assim que a produtora Uma Pedra no Sapato descreve “Terra Franca”, um filme que retrata “a vida deste pescador, atravessando as quatro estações que renovam os ciclos da natureza e acompanham as contingências da vida de Albertino Lobo”.
O Fantastic esteve à conversa com a realizadora de Vila Franca de Xira para falar sobre o seu novo projeto e do seu percurso até agora.
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"Terra Franca"é a primeira longa-metragem de Leonor Teles (Foto: Divulgação) |
Terra Franca é a tua primeira-longa metragem. Podemos considera-lo um filme muito sincero e humano. Nos últimos anos, esta aparente simplicidade é cada vez menos recorrente, sobretudo em documentários. Achas que isso vai marcar a diferença?
Sim, tens razão. É como se todos os filmes tivessem que ter um tema fraturante e polémico. Temas políticos e sociais, com grandes dramas…E aqui o tema é a vida, tal como ela é! Agora, se vai marcar a diferença, isso eu não sei. As pessoas que o virem é que saberão responder.
Porquê o nome Terra Franca ?
Terra Franca porque, primeiro, o filme passa-se em Vila Franca de Xira, e é uma bonita homenagem à cidade. Depois porque fala de pessoas que são genuinamente francas e bonitas, por isso acaba por ser uma terra com gente franca e são essas pessoas que eu retrato no filme.
Quando tu tiveste a ideia de fazer o filme, querias fazê-lo sobre Vila Franca ou o interesse era filmar aquele homem, o Albertino Lobo?
Foi uma junção de fatores. Eu sempre tive uma vontade de filmar Vila Franca e em específico aquele lugar junto ao rio, por causa do meu avô materno. Ele é varino e a minha família materna sempre esteve ligada ao rio. Eu andava de barco com ele e então sempre gostei daquela zona ribeirinha, sempre gostei muito do Tejo. Tinha isso presente na minha cabeça, que um dia poderia ir lá filmar. Depois, há uns anos, fui filmar uma outra coisa à praia dos Cavalos, que fica a uns quilómetros a norte da ponte Marechal Carmona, em Vila Franca, e à qual só temos acesso de barco, através do rio. E quem me deu boleia nesse dia foi o Albertino Lobo.
E foi aí que o conheceste?
Não, eu já o conhecia, a ele e à família, porque andei com a filha mais nova dele na escola. Mas depois desse momento, em que estive com o Albertino no barco e atravessámos o rio por baixo da ponte, em que o vi, ali, fiquei com aquela imagem na cabeça durante anos. O Albertino no barco, no seu elemento, o rio. Uma figura incrível! Na altura tinha 19 anos, por isso isto foi há cerca de sete anos. E pensei mesmo: este homem é incrível, eu tenho de o filmar! Fiquei com essa ideia na cabeça durante imenso tempo e mais tarde comecei a perceber que ele era a personagem para aquele sítio. Então, o Terra Franca partiu de um sítio, de uma personagem e da minha ligação com esses dois pontos. E foi sobretudo com esta imagem do Albertino no barco, no rio, no seu elemento, que tudo começou. Claro que era impossível fazer um filme só com essa imagem, mas foi esta que deu início a tudo. Depois eu comecei a perceber claramente que o Albertino era a personagem que eu precisava para explorar aquele espaço.
"Rhoma Acans"é o primeiro filme de Leonor Teles
Nos teus dois primeiros filmes a temática principal era a comunidade cigana. Agora focas-te num assunto que, para além de se passar na tua terra, tem a ver contigo, pois parte de ti e das tuas vivências. Achas que este deve ser o princípio de qualquer realizador?
Eu tenho essa necessidade, porque não sei falar de coisas que não estejam perto de mim, não sei falar de coisas que não me toquem. Quando eu faço um filme, tem de partir de algo que me toque, seja lá o que isso for. Pode ser uma imagem, uma pessoa, um tema, uma ação... Ou seja, eu tenho de estar implicada nos filmes que faço, pois é a única maneira de levar os filmes até ao fim. Para já não tenho coragem para ir falar de coisas que estejam assim tão longe. Mas no Terra Franca já fui um pouco mais longe, já falei de coisas que não têm só a ver comigo, embora eu esteja sempre implicada. E para mim os filmes têm de ser sempre pessoais, têm muito a ver com uma questão de urgência, de uma vontade... De uma inquietação que está cá dentro e que não se cala, enquanto não fizermos os filmes. Essa é a minha maneira de fazer, mas existem outras, claro, e são válidas. Mas eu, por enquanto, só sei fazer filmes assim.
E essa inquietação que vai dar origem a uma ideia, faz com que trabalhes os teus projetos de forma autónoma ou tens sempre alguma referência?
Eu não trabalho com referências. Ou melhor, as referências existem sempre, embora me atinjam a um nível mais inconsciente. Até agora os filmes que eu fiz surgiram de ideias muito simples. O Terra Franca surgiu a partir da tal imagem do Albertino no barco; o Rhoma Acans partia da pergunta "Como seria a minha vida se o meu pai não tivesse casado com a minha mãe?"; no caso do Balada de um Batráquio foi a ação de partir os sapos. Depois foi uma questão de ouvir os filmes e perceber o que é que eles precisam para crescer, adaptando-me à necessidade dos mesmos. Acho que é muito importante ouvirmos aquilo que os filmes precisam para se tornarem efectivamente filmes, e não simplesmente agarrar numa fórmula e aplicá-la. Como é que o Terra Franca seria se eu aplicasse a forma do Balada de um Batráquio? Era um desastre total.
"Balada de um Batráquio" venceu o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim, em 2016
Quando passas do Balada de um Batráquio para o Terra Franca, para além de abandonares a temática dos ciganos, passas também do formato curta para a longa-metragem. Nesta que foi a tua primeira longa enquanto realizadora, que grandes diferenças e dificuldades sentiste?
No início do processo, na pré-produção e na produção do projeto não senti grandes dificuldades. Isso aconteceu mais para a frente. Porque filmar é fácil, desde que saibas o que queres, claro. É ir lá e filmar. A montagem é que é mais difícil, porque tens de selecionar aquilo que fica no filme e fazer com que resulte. E houve muita coisas que tivemos de cortar, que achávamos incrível, mas que não deu mesmo. Até porque quando estás a fazer uma curta tu tens o filme inteiro na cabeça, porque a curta tem 10 ou 15 minutos e torna-se fácil ter essa ideia presente, visualmente. No caso de uma longa é mesmo difícil, ainda por cima documentário.
Mas quando partes para a rodagem, tens algum guião pensado?
Não tens propriamente um guião. Existe uma espécie de tratamento, mas é muito flexível, não é uma coisa estanque. E isso também te dá muitas possibilidades, o que torna a coisa um bocado difícil. Houve ali muitos momentos, durante o processo do Terra Franca, em que as coisas não estavam a funcionar. Mas depois entrou o João Braz, um dos dois montadores, e ele tinha uma visão super fresca, clara e objetiva, o que me ajudou a definir o filme. E durante o filme eu trabalhei com o Braz e a Luísa Homem, um trabalho de montagem que foi muito importante.
Consideras este filme uma ficção do real ou um puro documentário?
Nem uma coisa nem outra. Considero-o um filme, simplesmente. Eu não me revejo muito nessas classificações e acho que não tenho de dizer se é documentário ou ficção... O filme tem aspetos que são puramente documentais e outras que são ficção. Agora, o que eu posso dizer é que o Terra Franca ficou mais documentário do que aquilo que eu pensava inicialmente. Mas ainda bem que isso aconteceu, porque o filme é muito mais incrível do que aquilo que eu poderia alguma vez escrever.
Inicialmente estavas mais próxima da ficção do real?
Eu tinha um tratamento da história, nunca cheguei a ter mesmo um guião. Mas depois cheguei lá e as pessoas conseguiram surpreender-me muito mais do que aquilo que eu tinha escrito. E isso é que é incrível. A maneira como as pessoas falam, como se mexem, como ocupam o espaço é muito melhor do que a minha imaginação. E eu fui descobrindo isso não só na rodagem, fui descobrindo ao longo de todo o processo.
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"Terra Franca" estreou em Portugal no DocLisboa (Foto: Divulgação) |
Esse processo foi demorado?
Comecei a preparar um filme um ano antes da rodagem, que começou em outubro de 2015. Depois fui filmando ao longo de vários períodos até ao final do verão de 2016 e retomei em outubro de 2016 mais alguns meses. Em 2017, quando já estava a montar, filmei ainda algumas coisas que fui precisando para a montagem. Portanto, foram cerca de dois anos de rodagem e mais um de montagem. Mas eu acho que há uma coisa incrível nos documentários. Se as pessoas, neste caso o realizador, se dedicar a ouvir com atenção o que as pessoas têm para dizer e para dar, e não chegarem lá para tentar impor só as suas ideias, tudo funciona muito melhor. Porque é muito difícil replicar os movimentos e a presença de pessoas que já se conhecem há mais de vinte anos.
Em que sentido?
A maneira de falar, a intimidade que elas têm, a forma como o fazem, são brutais. As pessoas já se conhecem há tantos anos e há uma dinâmica, uma energia e uma intimidade que num mês um realizador nunca irá conseguir criar nem impor. Por isso é que eu nunca me atrevi a escrever diálogos para este filme, porque as pessoas têm a sua própria maneira de falar, que é característica, é bonita e merece estar figurada no ecrã.
Quando começaste a pensar em concretizar o Terra Franca, inicialmente pensaste-o como curta, mas depois tornou-se numa longa-metragem. O processo de produção foi inevitavelmente diferente. Desde sempre soubeste que ias fazê-lo com a Uma Pedra no Sapato?
Sim, sem dúvida! Até porque a primeira vez que eu falei desta ideia com a Filipa Reis, a produtora do filme, foi em agosto de 2014. E eu aí nem sequer tinha filmado o Balada de um Batráquio, só filmei no ano a seguir. Na altura era com eles que eu estava a trabalhar, na produção do Balada. Depois surgiu a ideia de concorrer a um concurso de apoio à produção de filmes. Eu expliquei à Filipa Reis que queria fazer um filme na minha terra, na zona junto ao rio, e ela não só concordou como me pediu para começar logo a escrever e a desenvolver o projeto.
Ela foi acompanhando todo o processo, até a ideia estar concretizada num projeto escrito?
Sim. Tanto ela como o João Miller Guerra sempre me apoiaram e ajudaram. Eles dão-me uma liberdade que se calhar outras pessoas não dão e isso é excelente.
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Foto: FABRIZIO BENSCH / REUTERS |
O facto de teres vencido o Urso de Ouro trouxe-te alguma vantagem para a produção do Terra Franca?Sim, absolutamente. Nesse ano, em 2016, eu concorri ao concurso de apoio à produção de documentários, pelo ICA, e ganhei. Claro que o facto de ganhar o Urso em Berlim foi fundamental.
E houve algum tipo de pressão criada em ti por teres vencido o Urso de Ouro? Gerou-se uma grande expectativa à volta do teu trabalho?
Eu estou sempre a dizer para as pessoas não esperarem nada! Até porque eu também não crio expectativas em relação ao facto de elas gostarem ou não. Eu não estou dentro da cabeça das pessoas e não sei aquilo que elas acham. E o gosto é uma coisa tão pessoal e tão íntima que é muito difícil criares afinidades com as pessoas através de um filme que é a tua visão sobre o mundo. Porque os meus filmes acabam por ser a minha visão sobre o mundo. É assim que eu trabalho. E nem toda a gente vê as coisas da mesma maneira que eu. É difícil saber o que é que as pessoas vão achar daquilo que eu faço. Mais vale ter as expectativas em baixo e depois serem superadas, do que o oposto. Tem é que se ter sempre os pés na terra.
Até agora tem corrido bem....
Exacto, até agora! (Risos)
O Terra Franca estreou em outubro em Portugal, no Doc Lisboa, vencendo o Prémio Escolas para Melhor Filme. Mas já sido premiado em França, no Cinéma Du Réel. Achas que estes prémios e o facto de teres vencido anteriormente um Urso de Ouro, faz com haja ainda mais gente a querer ver o Terra Franca?
Eu adorava que isso acontecesse! Isso é o lado bom de ganhar um prémio!
Então, concordas que nem sempre os filmes portugueses têm a visibilidade merecida?
Claro! Isso acaba por ser o problema das coisas feitas cá em Portugal… A maneira como o cinema português é comunicado às pessoas nem sempre é a melhor. Há um desligamento total em relação aos filmes portugueses e a culpa não é só dos espectadores! A culpa também é nossa, produtores, realizadores, cineastas, que não comunicamos os filmes da melhor maneira. Obviamente que, no meu caso, o Urso de Ouro fez com que o meu trabalho ganhasse alguma visibilidade. E ainda bem! E vou tentar usar esse facto da forma mais positiva possível, para atrair mais pessoas a ver o
Terra Franca. Porque é isso que eu quero, acima de tudo, que o meu filme seja visto pelo maior número de pessoas.
Por exemplo, em dezembro de 2017 estrearam em Portugal dois filmes com temáticas semelhantes, mas totalmente diferentes no seu conteúdo e forma. Estou a falar de O Fim da Inocência, do Joaquim Leitão, e do Verão Danado, do Pedro Cabeleira. Os filmes estrearam na mesma semana, mas enquanto O Fim da Inocência terminou com mais de 76 mil espectadores, o Verão Danado não foi além dos 981 espectadores. A que achas que se deve este facto?
O Verão Danado não teve a mesma máquina de comunicação do que O Fim da Inocência, nem sequer teve no mesmo número de salas, a diferença nesse sentido foi enorme! Depois, o Joaquim Leitão já é um realizador estabelecido, já tem o seu público. Por isso, é muito difícil furar isto. Neste caso, ou tens muito dinheiro e o apoio das marcas de comunicação, que te possibilitam ter outdoors, trailers ou outras formas de divulgação em todo o lado, ou então não dá. Porque a comunicação digital é importante, mas não chega. Não pode ser só essa a forma de comunicar o filme. A televisão ainda tem muita força.
Leonor Teles foi directora de fotografia do filme "Verão Danado", de Pedro Cabeleira
Para além deste problema de falta de comunicação, que outros problemas achas que existem neste processo de dar a conhecer o cinema português ao público?
Tudo começa nas escolas, e falo mesmo em escolas básicas e secundárias. Hoje em dia, tu não cresces para ser ensinado segundo um pensamento artístico, percebes? Não existe formação artística nas escolas! Os miúdos não vêm filmes na escola. Leem livros e são poucos, vão a algumas exposições ver pinturas, mas fica por aí. E isso é um problema.
Se tivesses que nomear um livro, um filme e uma música que achas que toda a gente devia ler, ver e ouvir, quais seriam?
Livros, sugeria dois. O Corto Maltese - A Balada do Mar Salgado, que é uma banda desenhada do Hugo Pratt, e Os Homens que Odeiam as Mulheres, do Stieg Larsson. Quanto ao filme, sem dúvida o In The Mood for Love, do Wong Kar-Wai. E uma música acho que, atualmente, diria o Malamente, da Rosalía.
Voltando ao filme Verão Danado, este foi um projeto no qual trabalhaste enquanto diretora de fotografia. Preferes a direção de fotografia ou a realização?
A direção de fotografia, sempre! Se pudesse, faria sempre direção de fotografia. E o Verão Danado foi um projeto especial, foi a primeira longa-metragem que eu filmei. Para além disso, pude filmar com o Pedro Cabeleira, que é meu amigo e que estudou comigo. E foi um filme especial porque quase toda a malta que esteve envolvida tinha acabado de sair da universidade e estava a fazer o seu primeiro filme. Queríamos muito fazer aquele filme, havia uma urgência muito grande em fazê-lo. E foi incrível porque as pessoas deram tudo de si, desde os atores à equipa técnica. O verão em que rodámos o filme foi brutal e tenho a certeza que esta foi das melhores experiências que já tive em cinema.
Depois desta estreia no Doc Lisboa, o Terra Franca estreia comercialmente em Portugal no início de 2019. Já nos disseste que não gostas de criar expectativas, mas como imaginas o percurso do filme no nosso país?
Espero que corra tudo bem, que o filme chegue às salas, que as pessoas vão vê-lo e que gostem, claro! Porque eu acho que filmes destes, como o Terra Franca, são mesmo especiais! Não pelo filme em si, mas por aquilo que vivi com as pessoas com quem filmei. Porque passas tanto tempo com elas e de repente tornas-te parte da família. Vais lá nos aniversários, no Natal, nas festas… E isso é mesmo bonito! E eu só posso estar agradecida pela família Lobo, em particular o Albertino e a Dália, me ter acolhido tão bem durante a rodagem do Terra Franca. Eles deixaram-me viver isto com eles, e só tenho mesmo que agradecer o privilégio!
Fantastic Entrevista - Leonor Teles
Por André Pereira e Rita Pereira
Novembro de 2018